"Não parece razoável o que estão
fazendo com o Lula". A frase do tucano Luís Carlos Bresser-Pereira poderia
ser o sinal da tão esperada distensão politica, mas não é por um único motivo:
Lula não é adversário, é inimigo. Ao adversário se estende a mão, reconhece-se
a sua dignidade humana e se respeita as regras do jogo. Lula nunca foi aceito.
Desde o primeiro dia do primeiro mandato, Lula tem sido submetido a um ataque
sistemático.
A Folha de S. Paulo investigou uma tal
propensão genética da família Silva ao álcool, a Revista Veja já celebrou o
'câncer do presidente' e o Globo já apresentou Lula como presidiário em suas
charges. Tudo isso sem falar na violência sanitarizada dos telejornais da Globo
com seus apresentadores cinicamente consternados com a corrupção no país,
enquanto o nome emissora (agora a RBS) aparece em mais um escândalo fiscal. Na
ausência absoluta de padrões éticos jornalísticos, nos resta perguntar se a
raiva irracional de William Waack contra Lula, Hugo Chaves e Cristina Kirchner,
por exemplo, não seria o caso de tratamento psiquiátrico.
No fundo no fundo, até os incendiários
Aécio Neves e Carlos Sampaio sabem que "não é razoável" como a
imprensa trata o ex-presidente Lula. Mas Lula da Silva foi longe demais em sua
loucura política de desafiar o establishment; e olhe que para aqueles de nós
frustrados com o PT, Lula fez muitas concessões e perdeu a oportunidade de
fazer as mudanças radicais que o Brasil tanto precisa; entre elas a urgente e
cara ley dos médios, a reforma agrária, e a justiça tributária. Inútil chorar o
leite derramado aqui porque ele segue derramando. O governo Dilma Rousseff
continua implacável no mesmo script, com o agravante de que em sua tecnicidade
Dilma nega a politica, se afasta do povo e afasta de vez a esperança na tão
sonhada virada de mesa do primeiro governo, do segundo, do terceiro, do quarto.
Ainda que Lula tenha alimentado os seus
próprios predadores na esperança inútil de que fazendo concessões estratégicas
a elite permitiria um governo popular, ir 'as ruas defendê-lo é um dever de
todos aqueles com um mínimo de educação politica e de perspectiva histórica. A
perseguição implacável que sofre é um indicativo das suas virtudes não dos seus
defeitos. Lula não é atacado porque fez menos do que o Brasil precisa, mas sim
porque ousou arranhar a centenária estrutura hierárquica do país trazendo os
pobres para o debate nacional. A não ser que as forças políticas de esquerda
corroborem com o moralismo dirigido do conglomerado policial-midiático segundo
o qual o PT é o partido mais corrupto da historia, a perseguição implacável a
Lula deveria despertar uma solidariedade política estratégica. A mensagem é
clara aqui: se Lula, com suas concessões pragmáticas, se converteu em inimigo
mortal, imagine a maquina de guerra que seria montada contra um hipotético
governo muito mais 'a esquerda? Talvez o tratamento editorial da Globo ao
presidente venezuelano Hugo Chaves – o sorriso mal disfarçado dos
apresentadores da Globo News com a sua morte - nos dê uma milésima dimensão de como
seria o terror midiático a um projeto político radical que as forças mais a'
esquerda do PT defendem e que o Brasil urgentemente precisa.
Que a imprensa trate Lula como inimigo é
explicável e deveria até fazer bem ao ego do ex-presidente. Ter a mídia como
inimiga é um termômetro importante. O que não é razoável é o silencio das
esquerdas com a violência politica da qual o ex-presidente é vitima, como se os
movimentos sociais e os partidos neste espectro políticos não fossem os
próximos da fila. Eles virão por nós!
Não é uma incongruência defender o legado
de Lula da Silva e criticar o pragmatismo político que nos trouxe ao momento
atual. Tampouco se trata de relativização moral porque o que está em questão
aqui não é provar sua inocência. Tarefa inútil. Há neste momento toda uma
estrutura estatal, incrivelmente sob o comando do ministro da Justiça do PT,
para encontrar um 'crime' praticado pelo ex-presidente. Perguntar não ofende:
quem de nós sobreviveria a tamanha cruzada policial-midiática? Não me refiro a
uma checagem de antecedentes criminais ou a uma varredura em contas no
exterior, mas a todo um aparelho policial estatal orientado a encontrar um
crime, um arranhão na biografia, um desvio na conduta dos filhos, dos vizinhos,
dos amigos.
Não há tempo a perder. Se há alguma lição a
se aprender do julgamento do 'mensalão' é que a defesa de Lula da Silva deve
acontecer nas ruas e nas mídias sociais porque é perda de tempo lamentar a
inimputabilidade tucana sob a plutocracia judiciária. Juízes, promotores e
delegados têm alma, classe social e partido político. Senão, como explicar as
aberrações jurídicas com assento na suprema corte e com suas retóricas
anti-petistas nos e fora dos autos? Leigos nos assuntos legais, eu e meu
sobrinho de sete anos sabemos que "não é razoável" que um juiz
falastrão utilize suas prerrogativas (e o nosso dinheiro!) para militância
político-partidária e que seja endossado pelo silencio ensurdecedor dos seus
pares. Mania de perseguição? Nas mãos petistas um cartão corporativo, uma
tapioca, uma canoa de lata ou o empréstimo de um sitio em Atibaia têm mais peso
policial-midiático do que um apartamento na Avenida Foch, no centro de Paris,
um helicóptero com meia tonelada de cocaína, as fraudes do metro paulistano, ou
cinco milhões de dólares em bancos suíços.
A tentativa de assassinato da biografia da
figura mais marcante da vida política nacional contemporânea tem um outro
significado importante. Com o assassinato politico de Lula abre-se caminho para
o desmonte da política soberana do pré-sal e para o retrocesso nas conquistas
sociais como o Bolsa Família e as cotas raciais nas universidades publicas. É o
que está por trás da violência contra Lula da Silva e é o que deveria nos unir
em sua defesa.
A história haverá de colocar em seus
devidos lugares dois presidentes, em dois brasis e com duas trajetórias
distintas. Um, (o presidente-sociólogo, poliglota, membro da Academia
Brasileira de Letras, descendente de imigrantes portugueses, frequentador dos
círculos acadêmicos norte-americanos) levou a cabo um criminoso programa de
privatizações do patrimônio público e alienação da soberania nacional. O outro,
(o presidente nordestino, metalúrgico, sem formação superior, e sem etiquetas
no falar) resgatou a esperança de milhões de brasileiros submetidos à
humilhação da fome e da seca. Nossos netos lerão nos livros de história sobre
um presidente semi-analfabeto, que abriu as portas do ensino superior para
milhões de jovens condenados por um presidente-sociólogo a repetir os passos
dos seus pais envelhecendo fora das universidades.
A história não poderá apagar o nome do
presidente nordestino que, não sendo poliglota como o presidente-sociólogo,
inseriu o Brasil como país soberano na cena politica mundial. Talvez quem hoje
tenha 20 anos de idade ou nasceu sob o governo do PT não tenha um parâmetro
para comparar o que era a vida dos mais pobres uma década. Eu tenho. Como jovem
e membro da Pastoral da Criança, durante os últimos resquícios da teologia da
libertação no interior da Bahia, eu conheci de perto a fome, a desnutrição e a
morte. Pesávamos crianças raquíticas, de pais raquíticos, com salários
raquíticos. Era morte produzida pelas politicas sociais do presidente sociólogo
e sua turma. Agora eles perseguem a capa do jornal matutino com Lula da Silva
algemado. Talvez ganhem a foto, mas perderão o sono.
Jaime Amparo Alves, natural de Ipiaú/BA.
Doutor em Antropologia Social pela
Universidade do Texas em Austin e professor de sociologia e antropologia da
City University of New York (CUNY/CSI)
Portal Vermelho
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